domingo, 7 de novembro de 2021

Saudade Enraizada

 Entre as árvores de minha infância,

escuto o choro de seus lamentos,

enquanto apodrecem e despencam

sobre a terra seca pelo vento...

Sinto escorrer as últimas gotas

da seiva d’alguma alegria antiga

esquecida entre o farfalhar

das folhas que piso,

perdido entre os caminhos

de minha estéril e precoce

viuvez (re)sentida...

 

Como se vivo fosse,

vago penando

neste lote mórbido

neste cemitério verde

desbotado,

onde me enterro

velando sua espera.

 

O sangue corre por meus olhos,

gotejando sua ausência,

clamando em silencio

por versos que confortem

o adeus engasgado

o beijo negado

o sorriso pálido da despedida...

Até logo não basta,

pois a dor só aumenta,

enraíza e aprofunda,

rasgando a carne ferida

pela faca do silêncio

que ecoa sua partida.

 

Entre todas as dores,

entre tantas fincadas,

que a alma sofre

(sofreu ou sofrerá)

nenhuma é tão cruel e desalmada

quanto a saudade

que me causa

a tua falta.

 

Saudade.

Essa “palavra triste”,

cafona e desgastada,

é a única que me veste

na nudez do desterro de ti.

 

Nenhuma outra palavra,

íntima ou estrangeira,

nenhum aforismo ou metáfora,

nenhum pranto ou canção,

nenhum desses versos

vindos no vento,

seria capaz

e talvez nem ela...

saudade...

na qual me enraízo

e me arrasto

às profundezas

das vastas miudezas

de tudo

em que você falta.

 

Para essa saudade

que dilacera minhas entranhas,

não há remédios nem perdão,

não há vingança nem consolo,

nem fumaça nem reza,

nada rega e nada seca,

apenas árvores mortas,

na alma desmatada,

floresta derrubada

desmorona em mim

por lágrimas pesadas

que inundam,

neste dia de sol,

a mente desarmada

com seus versos esquartejados,

sentimentos silenciados

e pensamentos suicidas...

 

Faltam escudos e palavras,

faltam lembranças e risadas,

danças ou piadas,

que possam preencher o vazio

da tristeza desterrada

pelo chão que escorrega

meu corpo e alma

isolado(s)

de toda e qualquer bonança,

deixando-se inundar

afundar

afogar

sufocar

num mar de pressa angustiada

onde não me resta mais nada

a não ser esperar.

 

Esperar e escutar:

o pássaro que chora ou gargalha,

escondido entre as árvores mortas

de saudade.

Saudade (canta o pássaro),

Saudade, saudade,

bem te vi, saudade...

 

Bem te vi, saudando, ó saudade...

Mal te vi, saúdo,

suado de sal...

Sau-da-de!

O sol te esconde,

saudade...

Saudade e sal...

sal de saudade...

Sórdida saudade...

Só saudade

e nada mais.

 

 

Y.G.S.O.

7 de novembro de 2021

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Fluxos em Quarentena



“Contra as paredes do triângulo,
em direção ao fora,
eles exercem a irresistível pressão da lava
ou o invisível gotejamento da água.”*

Uma gota ,
que pinga,
sem parar...
Um lamento,
que soluça,
sem chorar...
Uma rima,
que sofre,
sem cessar...
            Um contagio,
que alastra,
pelo ar...
Um vírus,
que mata,
sem pensar...
                        Um medo,
que prende,
sem curar...

Pandemia... Pandemônio...
Paladar!
Tristeza – Solidão:
Nosso Lar.

Na cama vazia,
entre dois,
um abismo –
das multidões fugidias
de fantasmas aflitos
em confinamentos vulcânicos...
Palavras não ditas,
(dis)culpas não perdidas,
dores não (mais) sentidas
            de (já) tanto sangradas
em feridas (des)estancadas.

            Feridas incuráveis
entre
cicatrizes inseparáveis.
Fluxos ou mágoas,
não mencionáveis.

Quando tristeza é vida
e a vida é o que míngua,
nos passeios errantes das lembranças
de um amor que finda.
Sem andanças ou lágrimas, 
enclausuradas em palavras 
e desesperança.

Uma piada,
que cala,
sem ninguém rir.
            Um corpo,
que cai,
            sem ninguém sentir
                        falta
ou saudade.
                                               A solidão final,
sem solução vital,
do Suicida,
no chão frio,
- entre fluxos diversos:
versos de sangue,
palavras miraculadas
e lágrimas castradas –
                                               da rua abafada e deserta.
                       
“Quem não sente
nos fluxos do seu desejo
a lava e a água?
Afinal, de que estamos doentes?”
           
                        O corpo
que falha...
(auto)trancafiado.
A mente trabalha,
fluxo amotinado...
emoção atrapalha,
recai-se no mimado
regime de espetáculo:
corte de navalha
ou campo minado?

Mas nada falta à Palha
girando
dançando num todo encantado
de uma cura que valha
o valor do inestimado.
Objetos parciais da incógnita ilha...
Terreiro de versos abandonados,
onde a escrita chacoalha,
sobre o pensamento sentenciado
à loucura que se espalha
no coração fatigado...
jorrando plasma nas tralhas.


                                   Não é papo de viado!
Nem de canalha.
Não falo de pecado,
nem da paixão que se estraçalha...
Falo por nada,
nada devo ao Falo...
Ninguém a quem falar,
quando se sente sem ar,
quando já não se tem mais
para onde nadar,
resta-se trancafiado
na ilhota do paladar.
Orgânica, saudável... será?

Baba, merda e prazer,
eis a trindade gastronômica.
Comemos o fantasma,
molecular, invisível
temperado no ar...
Cozinhamos,
em fluxos de medo,
todo e cada,
abraço apertado
ou conversa fiada.

“Nada de originário
nem de derivado,
                                                                        mas uma deriva generalizada.

Aquém e além
do fantasma molar,
velho conhecido
totalmente visível,
que no peito fez lar...
Que investe e insiste
em se (re)comunicar
por sombrios versos
repetidos ou roubados  
- no infinito constante
de cada instante -
decalcados e recalcados,
descascados e requentados:
o modo de produção
do libido perverso...

Amor em tempos de vírus?
Nem vivo nem morto.
O amor - ou será o tempo?
ou seremos vírus? -
está morto ou vivo,
não ao mesmo tempo,
mas cada um dos dois
ao termo de uma distância
que ele sobrevoa,
deslizando.”
                        Genealogizar o vírus,
transexuar o amor,
inocular os tempos,
conectar disjuntos,
produzir poética,
suspender suspiros,
liberar fluxos de vida,
imunizar a Alegria...
“tudo dividir, mas em si mesmo”.
Mutar o si mesmo
ilimitativamente
em “disjunção livre.
Eis, se não (h)a cura,
uma medida provisória,
aos fluxos patológicos
do, viril e atemporal,
desamor atual:
Devir quarentena
            não-triangular;
            multiplicar infinitos
em cada metro quadrado
que se contraenclausurar;
anticastração do vírus,
nos curar da cura
de quaisquer fantasma,
curar-se do eu...
E (sobre) viver,
voar sobre o viver,
deslizando
em fluxos de alegria.
                                                           Mas, afinal, de que estamos doentes?


Vila Isabel, 1º de abril de 2020

[* Os trechos entre aspas e em itálico são do livro O Anti-Édipo, de Deleuze & Guattari; (Trad. Luiz Orlandi; Ed. 34, 2011, pp. 94, 95, 106 ou 107).]

Contra-a-dicção, ou, Meditação ao contrário



Contra a disposição, a cama...
Contra a disciplina, a pessoa...
Contra o desapego, as dívidas...
Contra diga contra,
contradizendo Lisboa.
Contra a vida, a solidão.
Contra a quietude, o caos.
Contra o rio que corre,
de encontro à imensidão do mar,
a energia de morte,
do dinheiro líquido
de sangue, papel e lama.

Contra mim,
eu mesmo
contra tudo e contra todos...
Contra eu mesmo
muitos eus contrários
ao encontro
com outro si mesmo,
contrário a qualquer eu,
justamente, por contrariar
a contradição do ser
- desencantado
decantado
desencontrado do múltiplo -
que se diz uno,
que esconde
e explora
nalgum eu.
Contradiga.

Contra diga contra.
Contra-agigantar-se..

Na contradição é que se encontra,
o conflito operante
daquilo que vem a tona
no silêncio de toda zona
que, outrora errante,
se concentra no mergulho
silenciante
pelo contraditório caminho...
avante,
sem brilho
nem fraco nem ofuscante...
mergulho contra orgulho...
(des)angustiante de si.
Despedaça o embrulho
do eu vacilante,
entediante em si,
em toda atividade.

Mediação antimeditabunda,
meditação antimoribunda,
me-editar no conflito...
contraria o ascetismo
caotiza o silêncio
para silenciar o mergulho,
sem qualquer pretensão 
de sentido ou ordem unívoca.

Mergulho de encontro
ao si mesmo,
d’águas turbulentas e sujas
sobre a superfície,
ao contrário do fundo
so(m)briamente límpido,
silenciosamente gélido
onde se contra-encontra, 
se perde, se despede,
se contra-espelha,
o contrário de si,
a contradição em essência,
o contra-eu...
o meu contar (ia) a mim.
Contradigo
e encontro
meios meditativos...



Vila Isabel, 19 de janeiro ou 2 de abril de 2020.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

"Ainda há palavras belas"


Porque eu escrevo palavras num papel
que não serão as mesmas que você leu”

Meio-dia em ponto.
E já estou bêbado...
Mas eu nem bebi!?
Apenas aquele café com cigarro
de todas as manhãs,
mas abri o seu livro
zine
mata de palavras,
fogueira,
e queimei até o fim...
“Estar bem é sentir o tempo”                                                                   
e já é meio-dia
e ainda estou bêbado
de poesia
“como de dentro da barriga de mamãe”.

Nem sei quantos extremos gostei de sentir,
com quantos olhos as palavras li,
com quantos outros eus reencontrei
e perdi
a conta.

Mas desde as primeiras páginas,
já nasceu em mim
a ânsia de agradecer
de uma forma devida.
E eis aqui esta carta,
travestida de poema,
(provavelmente)
demasiado longa
e com versos tortos.
Perdoe-nos,
é a ferrugem
de quem há tempos
havia abandonado a poesia,
obcecado pela prosa.

“Nunca soube ser poeta
e agora
não comporto mais poesia”

Pode ser só a vaidade de mamãe Oxum,
mas me embebedei com sua nudez
e precisei me despir também
para agradecer.

Durante anos me dediquei e amei a poesia
– com uma disciplina que hoje não existe
e que invejo naquele menino sonhador –
lendo ou escrevendo
quase diariamente
(mas nunca gostei de meus poemas
ou da maioria deles).
Veio a política,
a filosofia,
o casamento,
a preguiça,
as obrigações,
o rio da vida
e me carregou
para muito longe daquele guri
e seus sonhos em versos.

Já considerava a (minha) poesia
uma brincadeira de criança
e a (“real”) poesia (dos outros)
uma lápide fria e triste,
ambas enterradas na memória.
Mas em seus versos
encontrei vida,
e também conceitos,
personagens,
alegria,
dor
e paixão.

Me revisitei
naquele moleque
de dezesseis anos
se embebedando escondido
de Federico e Virginia.
Mas a cerveja agora é artesanal
e não empoeirada e morta!
Produzida por mãos amigas
e sonhos irmãos.
Aqueles versos perfeitos,
etílicos e suaves,
(in)corporáveis  e sagradamente profanos,
belicosos e maternais,
eram de alguém de carne e osso.
Tive e tenho
muitos amigos poetas
que sempre li
pacientemente e entusiasmado
uns mais, outros menos,
mas nunca me deixaram nu
bêbado e vivo
como nesta manhã.

-Escrevo esta carta,
estes versos
com as mesmas mãos tremulas
de alegria e insegurança
com as quais tive a ousadia
juvenil
de (tentar) escrever uma “Oração à Bethânia”
anos atrás.
Escrevo como tiete
que vislumbra o ar
respirado pela diva.-

Escrevo para me apresentar e agradecer.
Nasci e cresci nesse “mar de gente”,
nasci e cresci sobre a lei:
o desconhecido é ameaça até que se prove
o contrário”.
Nasci e cresci indigente.
Mas esta manhã
recebi de presente
incontáveis visitas
de outros eus
esquecidos (pela mente
mas nunca pelo corpo).

Fantasmas dos poetas que não fui
e dos poemas que esqueci
me visitaram esta manhã
mas não vieram sozinhos...
Foram trazidos por uma desconhecida,
talvez a própria musa-Poesia,
que me deu a conhecer
(pelo menos)
duas Jullys:
a nua de papel
que me despiu e embebedou
com suas palavras
“num encontro mágico que não era amoroso”;
e a vestida, com roupa de santo,
que eu já conhecia
(mas não o suficiente,
talvez,
por minha contra-cabreirice de indigente)
e admirava
como minha irmã-cambone...
mas hoje me instiga,
me deixa curioso e inebriado,
a imaginar
quantas infinitas deusas
e passarinhos
vivem e devém
neste corpo-poesia?
(protegida por folhas nas orelhas
e vestida com “fios de rosa
daquelas que ainda tem espinhos”)
Mana, sua benção.   



Para Jully Wanny,
Irmã, te amo e te admiro cada dia mais.
Gratidão eterna pelos bons encontros, palavras e sorrisos. Que sua poesia floresça sempre mais, colorindo estes tempos sombrios e nos potencializando a suportá-los com alegria.
Yana
30 de outubtro de 2018