domingo, 18 de fevereiro de 2018

Extravio


           Esta noite sonhei com você. Sonhei com nosso filho. Havia muitos anos que não sonhava com a gente, durante os quais continuei a sonhar das mais diversas maneiras com a paternidade – até o ponto em que, hoje em dia, quase nem penso mais nessa possibilidade. Não sou capaz de ser uma pessoa boa nem para os adultos a minha volta, como posso sonhar em criar uma criança? Não sei... mas nós sonhávamos muito com isso, você se lembra? Sonhos de adolescentes imaturos, você provavelmente diria... e eu provavelmente concordaria. Mas, então, porque, depois de tantos anos, assisti no desfile de delírios noturnos desta madrugada aquela mesma aflição da sala de espera que assistia há anos atrás, aquela mesma caminhada pelos mesmos corredores gelados e amarelados, seguindo a mesma enfermeira desconhecida, até encontrar você, suada e cansada, com os mesmos olhos verdes e o mesmo sorriso estalado no rosto? Será que você também sonhou conosco esta noite? Será que você ainda sonha conosco? Provavelmente não, no máximo pesadelos... até onde eu sei, pelo menos, você não se lembra de muita coisa de nosso tempo juntos, a não ser as partes ruins. Não a culpo, elas eram bem ruins e sobretudo por culpa minha, concordo. Ao fim de nossa relação eu realmente me tornei o monstro do qual você se lembra e eu fujo, até hoje.
Mas será possível que, nem lá no fundo, você guarde algum carinho pelas nossas lembranças felizes? Ou pelos filhos e outros planos que não realizamos? Será que eu sou a única pessoa no mundo que sabe o quanto já fomos felizes, nós dois, e levarei essas lembranças exclusivas para o túmulo? Hoje em dia sou feliz, com outra pessoa e outro tipo de relação, que nunca nem imaginávamos em nosso tempo juntos... creio poder dizer que sou até mais feliz do que fui com você, mas porque, raios, ainda sonho? O que tivemos não pode perder-se na memória apenas como um pesadelo a ser esquecido... apesar do final catastrófico e traumático, acho, tivemos um enorme e alegre primeiro amor e sinto falta de lembrar afetuosamente de você... sinto falta de saber que você ainda existe. Saber como você está hoje? É feliz, sozinha ou com alguém? Ainda tem vontade de ser mãe? Seus olhos ainda mudam de cor quando pega sol? Seu sorriso ainda é tímido e conquistador ao mesmo tempo? Você ainda cora quando recebe elogios? Foi para tentar fugir destas e mais tantas perguntas fantasmagóricas que assombravam (junto com o chorinho leve de nosso filho jamais nascido, fora do mundo onírico) minha mente matinal que resolvi escrever esta carta inútil: jorrar no papel, para tentar apagar da mente, estas palavras emudecidas pela solidão de minha memória, palavras que você nunca lerá e que levarei para o túmulo, talvez, junto com as lembranças nostálgicas de nossos sorrisos juntos. Espero que sejas feliz.

18 de fevereiro de 2018