Quem o olha não o vê,
apenas num momento derradeiro,
após desistir de tentar entender.
Primeiramente só enxerga
o rosto de menino,
vendo sua boca larga
abrir-se num sorriso tímido.
Já quando se conserva uma conversa,
com o sotaque de seu silencio,
imagina-se de maneira apressada
ouvir à um rapaz perdido
numa loucura pacifica, mas incomoda(da).
Tudo isso se desmancha,
enfim todavia,
em preconceitos e vergonha
quando ele canta sua melodia...
ou quando arrancamos as mascaras
de nossa analfabeta hipocrisia
para debruçar-nos de cara limpa
sobre as palavras decantadas com harmonia
por sua oculta sabedoria.
Pus-me a seguir às trilhas abertas
por seu nomadismo poético
para sepultar ideias mortas,
expor segredos fonéticos
e desexplicar os acordes violetas
com que (sobre)vivemos o mundo patético.
Acabei por encontrar veredas tortas
de meu próprio labirinto estético
e espreguiçar os horizontes das frotas
do meu arsenal, até então estático,
de versos calados pela interna revolta
eterna: do ser-tão perigosamente herético.
Foi assim que encontrei-me no intimo
de versos e intensões alheias,
(Daquele sábio com rosto de menino,
com um sotaque de maluco e canto de sereia,
coração de poeta e silencio de profeta)
frente à sonhos e sons de tons infinitos
daquela mesma ânsia
dos meus próprios versos aflitos
que sonhavam com ser tamanha poesia.
Poema feito para (e a partir de) a poesia de Marlon Cardozo (amigo e mestre)
Niterói, 9 de Dezembro de 2015
Yan Venturin
"Malícias maluqueiras, e perversidades, sempre tem alguma, mas escasseadas. Geração minha, verdadeira, ainda não eram assim. Ah, vai vir um tempo, em que não se usa mais matar gente... [...] 'Maluqueiras – é o que não dá certo. Mas só é maluqueira depois que se sabe que não acertou!'” (Riobaldo Tatarana) *** "Podem dizer que isto é loucura, mas é somente a mais pura maneira de se amar." (Jorge Mautner)
quinta-feira, 10 de dezembro de 2015
terça-feira, 10 de novembro de 2015
O náufrago e a Risada.
Nadava perdido por um oceano
de podridão, rancor e vaidades.
Entre corpos afogados no ego mundano
e ondas imundas de prepotência inimagináveis.
Começava a lembrar de que era humano
e nada conseguiria jamais amenizar
o cansaço daquele esforço insano
que fazia para continuar
seguindo, no lamaçal desumano.
Já cansado de o nada abraçar
pensei em desistir do plano
de escapar deste lugar
e simplesmente parar,
boiando a deriva,
e esperar os tubarões virem me buscar.
Foi então que ela surgiu, flutuando
em uma pequena jangada,
de um duro plástico branco.
Logo me disse apressada
que não havia sentido nadar,
nem boiar, nem tentar rimar.
Não havia como se salvar,
não havia saída daquele mar.
Estávamos presos simplesmente...
Mas era bom não estar sozinha
e ter com quem conversar...
Perguntei quem era ela
e tive como resposta
o som lindo de sua gargalhada.
Me apaixonei pela melodia
das histórias que aquela risada me contava
e por seu modo de viver:
Sempre ali, cortando sozinha
as ondas da hipocrisia,
naquele barco-fardo
de trabalho e poesia.
E suas defesas contra a melancolia,
eram apenas duas:
o serviço mal pago
e o sorriso inapagável.
E que sorriso!
Magnifico e radiante,
inevitavelmente contagiante...
mesmo após os buracos e rugas
enfrentados pela vida,
antes e depois do naufrágio.
Logo percebi, no brilho de seus olhos,
que não passava de uma criança
alegre, corajosa e sabia,
mas tão perdida quanto eu
naquele oceano mesquinho...
Mas continuamos vivos
e seguindo, rindo e cantando,
entre o arrogante silencio
deste mar de ignorância
que os cadáveres boiando,
acéfalos pós-graduados,
ousaram chamar de Universo.
Para Memb, Novembro de 2015
Rio de Janeiro, Jacarépagua
Yan Venturin
sexta-feira, 28 de agosto de 2015
Caçadores Invisíveis
O rapaz apaixonado
vive uma guerra interna,
onde combate, de um lado,
sua lembrança infantil de escrever poemas.
Do outro, há o braço ensanguentado
de um monstruoso carrasco sem pena,
e seu fiel e irônico aliado:
um palhaço bobo e sem graça
que é o único a rir de suas piadas.
Suas estratégias atrapalham e iludem o poeta.
O carrasco o atrapalha com seus gritos
ecoando dentro da mente incerta,
reprovando sonhos e silenciando conflitos.
Já o palhaço ataca de forma mais indireta,
ao alimentar as utopias idealistas do espirito...
A ilusão do primeiro é a fé analfabeta
numa poética sem suor ou rito.
Enquanto a do outro é a busca desperta
atrás dos sonhos do menino aflito,
que quis crescer poeta
mas perdeu-se atrapalhado no mito
de uma inspiração seleta,
de um passado perdido
ou da posição de profeta.
Mas o que é um profeta sem discípulos?
Ou um poeta sem leitores?
São o mesmo que a inspiração sem compromisso
ou a mecanização dos amores.
É como um sacerdote sem destino
ou um ateu cheio de pudores.
O carrasco insiste em gritar com o menino
e o palhaço chora de tanto rir, entre as flores,
enraizadas a beira do abismo
de ilusões incolores
onde a alma cai em desatino
tentando descrever seus caçadores.
Palhaço e carrasco caçam na floresta psíquica,
narrando, aos gritos, antigas fábulas
sobre uma inspiração mística.
Fazendo-o se confundir com as rimas,
perdendo-as para as dúvidas da critica
e as dívidas do medo que o inclina
frente a pergunta fatídica:
qual a fonte energética do poema?
A tal inspiração teria uma origem metafísica
ou seria parte da natureza?
Fruto da vontade e da disciplina,
jogo entre lembranças e certeza,
ou simplesmente dádiva divina?
O carrasco nega-o as três alternativas,
decepando sonhos com sua lamina vil.
O palhaço, por sua vez, o faz acreditar
numa síntese indescritível
entre o menino que brincava de poeta
e o homem com a mania irreversível
de amar em prosa e sonhar com poesia.
Todavia, tudo parece impossível,
rimar, sorrir ou pensar,
quando se é caça do invisível
que habita aquele mesmo lugar
ao qual seria o único cabível
para alguma resistência brotar:
a alma insensível.
Este insensível campo de batalha
onde luta sozinho e desarmado
contra uma dupla armadilha
da consciência de rapaz apaixonado
que, entre versos calados, trilha
aos tropeços, um caminho abandonado.
Com o carrasco sempre a vigília
e o palhaço rindo ao seu lado,
daqueles medos e manias
herdadas do menino assustado
amadurecidas em fantasias
num poema desajustado.
Yan Venturin,
Morro do Estado, Niterói,
Agosto de 2015
vive uma guerra interna,
onde combate, de um lado,
sua lembrança infantil de escrever poemas.
Do outro, há o braço ensanguentado
de um monstruoso carrasco sem pena,
e seu fiel e irônico aliado:
um palhaço bobo e sem graça
que é o único a rir de suas piadas.
Suas estratégias atrapalham e iludem o poeta.
O carrasco o atrapalha com seus gritos
ecoando dentro da mente incerta,
reprovando sonhos e silenciando conflitos.
Já o palhaço ataca de forma mais indireta,
ao alimentar as utopias idealistas do espirito...
A ilusão do primeiro é a fé analfabeta
numa poética sem suor ou rito.
Enquanto a do outro é a busca desperta
atrás dos sonhos do menino aflito,
que quis crescer poeta
mas perdeu-se atrapalhado no mito
de uma inspiração seleta,
de um passado perdido
ou da posição de profeta.
Mas o que é um profeta sem discípulos?
Ou um poeta sem leitores?
São o mesmo que a inspiração sem compromisso
ou a mecanização dos amores.
É como um sacerdote sem destino
ou um ateu cheio de pudores.
O carrasco insiste em gritar com o menino
e o palhaço chora de tanto rir, entre as flores,
enraizadas a beira do abismo
de ilusões incolores
onde a alma cai em desatino
tentando descrever seus caçadores.
Palhaço e carrasco caçam na floresta psíquica,
narrando, aos gritos, antigas fábulas
sobre uma inspiração mística.
Fazendo-o se confundir com as rimas,
perdendo-as para as dúvidas da critica
e as dívidas do medo que o inclina
frente a pergunta fatídica:
qual a fonte energética do poema?
A tal inspiração teria uma origem metafísica
ou seria parte da natureza?
Fruto da vontade e da disciplina,
jogo entre lembranças e certeza,
ou simplesmente dádiva divina?
O carrasco nega-o as três alternativas,
decepando sonhos com sua lamina vil.
O palhaço, por sua vez, o faz acreditar
numa síntese indescritível
entre o menino que brincava de poeta
e o homem com a mania irreversível
de amar em prosa e sonhar com poesia.
Todavia, tudo parece impossível,
rimar, sorrir ou pensar,
quando se é caça do invisível
que habita aquele mesmo lugar
ao qual seria o único cabível
para alguma resistência brotar:
a alma insensível.
Este insensível campo de batalha
onde luta sozinho e desarmado
contra uma dupla armadilha
da consciência de rapaz apaixonado
que, entre versos calados, trilha
aos tropeços, um caminho abandonado.
Com o carrasco sempre a vigília
e o palhaço rindo ao seu lado,
daqueles medos e manias
herdadas do menino assustado
amadurecidas em fantasias
num poema desajustado.
Yan Venturin,
Morro do Estado, Niterói,
Agosto de 2015
sexta-feira, 24 de abril de 2015
Vista submersa de versos poluidos
Jogo pedras na Baia de Guanabara
para tentar afogar a tristeza
ou acordar alguma deusa ou certeza.
Mas Yemanjá se mantem calada...
Me surpreendo com a beleza
que sobrevive, ainda que manchada,
em lotes encurralados da natureza.
Perdidos no horizonte sujo refletido n’agua
entre prédios submersos com luzes acesas
e tartarugas nadando em nuvens de fumaça.
Ao perceber toda essa neblina
que sai de canos de descarga
me esqueço, por um instante de nada,
da minha tristeza e da agonia do mar
e resolvo ascender um cigarro de palha
para ter com quem conversar
ou apenas para conseguir respirar.
Como se me mandando parar de fumar
Dona Janaina finalmente decide se pronunciar,
como sempre sem o silencio desmanchar:
sopra forte sobre meu rosto
um vento salgado que envolve meu corpo
refresca meu peito
e fuma meu cigarro quase todo.
Mas assim como este venenoso hábito
a resposta também dura pouco...
o vento vai diminuindo aos poucos
e de repente seu pouco
já não é nada.
Mas eu continuo ali, feito um louco,
conversando com aquele silencio rouco
com que canta a solidão da madrugada
refletida nas ondas da Guanabara
sobre pedras afogadas,
tartarugas poluídas
e tristezas caladas.
Niterói, Abril de 2015
sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015
Uma tragédia de hóspedes sentimentais
I.
Certo dia, pouco depois de me mudar
para esta casa onde hoje ainda vivemos,
há muitos anos atrás
acordei com alguém a bater na porta
e quando fui abrir, havia uma menina,
ou já seria uma mulher?
Algo entre estas duas fases...
uma quase-adolescente, tímida e inédita,
razoavelmente mais nova do que eu...
eu ainda não era essa velha gorda aqui.
Pelo olho-mágico pude imagina-la frágil e delicada,
mas já em sua primeira palavra
percebi, nos acordes e no tom de sua voz,
o quanto era poderosa,
inteligente e perigosa,
caso confrontada da forma errada.
Pediu, educadamente, para entrar,
porém fazendo questão de deixar
já claro
que vinha para ficar.
Me contou que seu nome era Loucura
e começou a desfazer sua mala,
que mais parecia com a trouxa magra
de um boia-fria
ao descer do Pau-de-arara.
Tentou tranquilizar-me: não incomodaria,
pois falava pouco e baixo,
quase não comia
e tendo algum canto, forrado de plástico,
para dormir e poder tratar de suas manias,
ia quase parecer um espirito
e com o tempo eu a esqueceria.
Tomei um susto com tamanha sinceridade,
ou com tão espontânea sem cerimonia,
combinadas a uma lucida criatividade
e aquela autentica sabedoria...
além da inesperável retórica, para a idade
que parecia ter a menina.
Mas o tempo, na realidade,
me fez criar uma certa simpatia
por aquela invasora com olhos de jade
que na claridade deixavam-se ver
a peculiar necessidade que a trazia:
ter quem a visse crescer.
E já a criava e sustentava como uma filha
quando corou e me contou
que tinha uma família.
Contou e chorou,
todas as suas lágrimas perdidas
e já quase esquecidas,
desde que havia sido acolhida
com sua insanidade inocente
e um cobertor esfarrapado
entre os livros da estante.
Então, tão de repente quanto sua chegada,
acreditei rever, por apenas um instante,
por trás de alguma lágrima secada,
aquele brilho lucido e infantil
com que sorriu quando abri a porta de entrada.
Foi neste momento,
deitada em meu colo, na sacada,
que se lembrou de me contar
que sua mãe havia negado outro rebento.
Antes de bater em minha porta,
aquele irmão
- mais velho, mas pouco, que nem eu -
era a única pessoa com quem ela podia contar.
Todavia ele também sumira,
junto com a mãe
naquele maldito dia.
Mas ao menos ele voltara...
apareceu aqui ontem a tardinha,
enquanto eu estava longe, na estrada.
Ele se assustou ao ver a irmã tão crescida,
feliz e sadia.
Ela tudo lhe contou,
sem chorar ou corar,
e ele disse que outro dia ia voltar,
quando a dona da casa estivesse no lugar,
e ainda me chamou de tia.
E isto ela me contou só por provocar.
Mas e afinal, qual é o nome dele, menina?
Se chama Amor.
II.
Amor apareceu e eu estava na cozinha,
fazendo o almoço...
Já chegou pedindo comida
e elogiando o cheiro gostoso.
Quando o vi, pela primeira vez, ali parado
na soleira da porta,
acreditei ser apenas um menino,
como a irmã,
tímido e abandonado...
desviando sua vista da minha.
Pouco depois, contudo,
meu instinto já percebia
ser mais um garoto safado
olhando de esguia,
muito mal disfarçado,
a marca de minha calcinha
por debaixo do vestido
enquanto zanzava pela cozinha.
Durante o almoço já o imaginava
um homem maduro,
acabado de sair da cadeia,
encarando meus seios
e engolindo minha comida,
com pressa e medo
de eu me sentir ofendida.
Seu rosto ficava rosado
mas jamais conseguiria
conter as fomes e os anseios
de toda uma vida
perdida trancafiado
em alguma sombra apodrecida.
Mas foi só após comermos,
quando me pediu um cigarro
que finalmente cruzamos
nossos olhares, de fato.
Só então pude perceber
que estava a encarar
os olhos que sempre lembrava de ver
em meus sonhos, ao acordar.
Ele também pareceu me reconhecer,
pois apesar dos cinzeiros espalhados em todo lugar
(na janela ou em cima da tevê
ou em cima da mesa ou no sofá),
fugiu de mim, indo para a varanda fumar.
Senti todo meu corpo estremecer
e instantaneamente me apaixonar
pelo seu jeito alegre de ser
e o gingado vulgar
do seu jeito de andar.
No almoço lhe abri a porta de casa,
e a noite a de meu quarto.
Não sei qual tipo de mágica foi essa,
mas ele dobrou o tamanho
de meu colchão de viúva
e me fez amar como nunca
já ao primeiro beijo na nuca.
Ainda naquela noite,
após fazermos amor,
pela primeira vez,
Amor me contou de sua vida
e a verdadeira estória de sua família.
Quase se desesperou,
quando contei a versão de Loucura.
Nunca ninguém a abandonou.
A mãe deles é uma pobre velhinha,
doente e sozinha,
chamada Tristeza.
Um dia Amor precisou leva-la ao hospital
e a menina dormia.
Acharam melhor não acorda-la,
para não preocupa-la,
e a deixaram sozinha.
Quando voltaram do médico
a menina sumira.
Desde então vinha a procurando,
em todo canto e em cada esquina...
Mas o que ele nunca me contou,
é como ele e a menina,
haviam esbarrado em minha vida.
Mas agora já não queria outra vida.
III.
Depois daquela noite de luar bonito,
e a aurora durando até meio-dia,
nunca mais tocamos no assunto
da “mentira” da menina
ou, pelo menos,
da completa divergência
de suas lembranças de família.
Tanto eu quanto ele, todavia,
conversamos, discutimos,
dialogamos, ouvimos,
e até brigamos,
mas novamente tentamos
e, por fim, convencemos
Loucura: já estava na hora
de ela reencontrar sua mãe
e de eu conhecer minha sogra.
No domingo seguinte acordei sozinha
e após um instante aflita
sai do quarto e me deparei
com mãe e filha
chorando entrelaçadas...
visivelmente amadas
entre si,
nada mais importava...
Procurei o olhar de Amor,
mas o irmão e filho
se perdia fixo,
contemplando paralisado
aquela felicidade.
Estava sentado inerte,
quieto e triste, na surdina,
como um sacrifício
que fora, na esquina,
oferecido e esquecido
até a próxima chuva fina...
Ao lado da mãe, Loucura parecia
mais nova do que nunca.
Rejuvenescida pela alegria
de se aninhar no colo da velha coruja.
Por minha vez, nunca pude fazer ideia
da faixa etária de D. Tristeza,
mas, ao contrario da de sua filha,
e um pouco, também, de seu filho,
que variavam de acordo com o humor
sua velhice me parecia inalcançável
e inimaginável, já no primeiro momento.
Deus que me perdoe,
mas realmente nunca havia visto
e até hoje estou por ver
alguém com a aparência tão idosa.
Ela, todavia, ainda parecia ter
uma alma forte e bondosa.
Ao me encarar pude perceber,
num leve brilho cor de rosa
em seus olhos já quase cegos para ler,
os últimos vestígios da jovem formosa
que deveria ser
antes da atitude corajosa
de dar vida a outro ser.
Em cada ruga de sua face oleosa
e de seu sorriso puro e clichê
via-se as cicatrizes da tarefa penosa
de doar a vida para outro ser.
No seu caso dois outros seres,
Amor e Loucura,
suas únicas razões de continuar a viver.
Ser mãe era sua cura,
era o que a impedia de morrer.
E com o passar da semana e dos meses,
pude até vê-la rejuvenescer
por segundos, algumas vezes,
ao ver a filha crescer
ou ao lembrar que um dia teve
um amor, como eu e seu filho fazíamos nascer...
ou, ainda, assistindo as novelas da tevê
que lhe faziam lembrar e rever
pesadas lagrimas e sorrisos leves
que há muitos anos teve que verter.
Dona tristeza, que pedia para ser chamada
apenas de Mãe Triste,
me adotou como uma nora amada,
apressada por fazer-se a mãe que nunca tive.
E assim vivemos nessa morada,
durante um ano que parecera vinte
como uma família feliz, unida,
amada e forte.
Até aquela estranha madrugada.
Me lembro como se fosse ontem,
acordei e vi o relógio, do criado mudo:
meia-noite e um.
O motivo de ter acordado
foi o vazio de meu corpo nu,
de repente, sozinho no leito
após sentir o movimento
de Amor se levantando num segundo
ligeiro e atento.
Perguntei-lhe onde ia
e recebi em resposta o silencio,
imaginei que ele já estaria
vagando meio sonambulo
no banheiro ou pela cozinha,
mas não achei nada dele no apartamento,
nem ele, ao me levantar,
já cansada de na cama esperar.
Tentei não me desesperar
para as outras não acordar,
mas algum barulho ou movimento
acabou por me denunciar.
A porta do outro quarto
se abriu para minha sogra despertar.
Mãe Triste se levantou
e se pôs a chorar,
mas logo se acalmou
e pode me contar
que o Seu grande amor,
pai de Amor e Loucura,
havia repentinamente sumido
numa madrugada de muitos anos atrás
escorregando da cama para um abismo
de onde nunca mais pode retornar.
Despejou todo o peso daquele segredo
durante anos reprimido e já quase esquecido
sobre mim, para depois tentar me consolar...
dizendo que o filho
nunca seria igual ao pai,
pois havia visto
a Mãe viver sofrendo
e nascera para me amar.
Abriu a porta e saiu, quase correndo
com seu passo duro de idosa,
de repente, prometendo voltar,
com o filho e um anel de noivado
antes mesmo da menina acordar.
Contudo Loucura, como sempre,
acordou ao amanhecer
e, mais uma vez, só a gente
se encontrava aqui, a sofrer.
Me agarrei a seu corpinho frágil e quente,
apertando totalmente seu modo de ver
contra meu corpo, abraçando-me profundamente
ao seu otimismo contente
e a sua certeza de que eles iriam aparecer
antes mesmo de que o dia esquente.
Mas ele esquentou e esfriou,
e mais uma noite chegou
e nem sinal de meu Amor
ou da Mãe Triste...
apenas Loucura ficou,
para tentar me consolar
e fingindo ser adulta
tentar não se desesperar.
Na manhã seguinte, contudo,
foi sua vez de me abandonar
dizendo que iria revirar tudo
até nossa família encontrar.
Procuraria nos escombros
de seu antigo lar
e em cada canto vazio e sujo
dessa cidade, até encontrar
mãe e irmão sumidos
e talvez perdidos
sem conseguir voltar.
Quis ir com ela,
mas me mandou ficar,
com uma lucidez madura e sincera
que brilhou inédita
em seu olhar.
Alguém precisa ficar e esperar,
pois eles podem finalmente
conseguir voltar
mas se na casa não tiver gente,
como poderão entrar?
Junto com ela
todavia
foi-se embora, pela porta,
minhas esperanças de um dia
abri-la, novamente, para a alegria.
Já me desejava morta,
já me sentia uma morta-viva,
ao encarar no espelho minha boca torta
e minha alma vazia...
Quando completou uma semana exata
de que o Amor sumira,
naquela madrugada maldita,
descobri não estar completamente sozinha.
Não haviam partido sem me deixar nada,
ao menos, algo de estranho restara
dentro dessa casa abandonada.
Daquela família alucinada,
que transformara meu lar em hospedaria
e sumira sem a conta pagar,
algo de vivo sobrara
dentro de minha vida arruinada.
E quem diria?
Que me deixariam uma rara
e linda felicidade. Este pequeno vestígio de nostalgia,
um ultimo presente que me consolara,
um ultimo motivo de alegria,
que no útero eu carregava...
Sim, era você mesmo minha filha,
o ultimo resquício daquela família,
a nova vida que me restava
e que, não teria outra opção,
não poderia achar outro nome para batiza-la
se não o seu, minha Solidão,
minha filha única e amada.
Por tua causa, nada foi em vão
por você ainda estou nesta casa
e tudo pode ser mais que um delírio
triste e apaixonante da estrada.
Fevereiro e Setembro de 2015
Morro do Estado, Niterói (RJ)
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