sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Uma tragédia de hóspedes sentimentais




I.
Certo dia, pouco depois de me mudar
para esta casa onde hoje ainda vivemos,
há muitos anos atrás
acordei com alguém a bater na porta
e quando fui abrir, havia uma menina,
ou já seria uma mulher?
Algo entre estas duas fases...
uma quase-adolescente, tímida e inédita,
razoavelmente mais nova do que eu...
eu ainda não era essa velha gorda aqui.
Pelo olho-mágico pude imagina-la frágil e delicada,
mas já em sua primeira palavra
percebi, nos acordes e no tom de sua voz,
o quanto era poderosa,
inteligente e perigosa,
caso confrontada da forma errada.

Pediu, educadamente, para entrar,
porém fazendo questão de deixar
já claro
que vinha para ficar.
Me contou que seu nome era Loucura
e começou a desfazer sua mala,
que mais parecia com a trouxa magra
de um boia-fria
ao descer do Pau-de-arara.

Tentou tranquilizar-me: não incomodaria,
pois falava pouco e baixo,
quase não comia
e tendo algum canto, forrado de plástico,
para dormir e poder tratar de suas manias,
ia quase parecer um espirito
e com o tempo eu a esqueceria.


Tomei um susto com tamanha sinceridade,
ou com tão espontânea sem cerimonia,
combinadas a uma lucida criatividade
e aquela autentica sabedoria...
além da inesperável retórica, para a idade
que parecia ter a menina.
Mas o tempo, na realidade,
me fez criar uma certa simpatia
por aquela invasora com olhos de jade
que na claridade deixavam-se ver
a peculiar necessidade que a trazia:
ter quem a visse crescer.


E já a criava e sustentava como uma filha
quando corou e me contou
que tinha uma família.
Contou e chorou,
todas as suas lágrimas perdidas
e já quase esquecidas,
desde que havia sido acolhida
com sua insanidade inocente
e um cobertor esfarrapado
entre os livros da estante.

Então, tão de repente quanto sua chegada,
acreditei rever, por apenas um instante,
por trás de alguma lágrima secada,
aquele brilho lucido e infantil
com que sorriu quando abri a porta de entrada.
Foi neste momento,
deitada em meu colo, na sacada,
que se lembrou de me contar
que sua mãe havia negado outro rebento.
Antes de bater em minha porta,
aquele irmão
- mais velho, mas pouco, que nem eu -
era a única pessoa com quem ela podia contar.
Todavia ele também sumira,
junto com a mãe
naquele maldito dia.

Mas ao menos ele voltara...
apareceu aqui ontem a tardinha,
enquanto eu estava longe, na estrada.
Ele se assustou ao ver a irmã tão crescida,
feliz e sadia.
Ela tudo lhe contou,
sem chorar ou corar,
e ele disse que outro dia ia voltar,
quando a dona da casa estivesse no lugar,
e ainda me chamou de tia.

E isto ela me contou só por provocar.

Mas e afinal, qual é o nome dele, menina?
Se chama Amor.


II.
Amor apareceu e eu estava na cozinha,
fazendo o almoço...
Já chegou pedindo comida
e elogiando o cheiro gostoso.

Quando o vi, pela primeira vez, ali parado
na soleira da porta,
acreditei ser apenas um menino,
como a irmã,
tímido e abandonado...
desviando sua vista da minha.

Pouco depois, contudo,
meu instinto já percebia
ser mais um garoto safado
olhando de esguia,
muito mal disfarçado,
a marca de minha calcinha
por debaixo do vestido
enquanto zanzava pela cozinha.

Durante o almoço já o imaginava
um homem maduro,
acabado de sair da cadeia,
encarando meus seios
e engolindo minha comida,
com pressa e medo
de eu me sentir ofendida.
Seu rosto ficava rosado
mas jamais conseguiria
conter as fomes e os anseios
de toda uma vida
perdida trancafiado
em alguma sombra apodrecida.

Mas foi só após comermos,
quando me pediu um cigarro
que finalmente cruzamos
nossos olhares, de fato.
Só então pude perceber
que estava a encarar
os olhos que sempre lembrava de ver
em meus sonhos, ao acordar.
Ele também pareceu me reconhecer,
pois apesar dos cinzeiros espalhados em todo lugar
(na janela ou em cima da tevê
ou em cima da mesa ou no sofá),
fugiu de mim, indo para a varanda fumar.
Senti todo meu corpo estremecer
e instantaneamente me apaixonar
pelo seu jeito alegre de ser
e o gingado vulgar
do seu jeito de andar.

No almoço lhe abri a porta de casa,
e a noite a de meu quarto.
Não sei qual tipo de mágica foi essa,
mas ele dobrou o tamanho
de meu colchão de viúva
e me fez amar como nunca
já ao primeiro beijo na nuca.
Ainda naquela noite,
após fazermos amor,
pela primeira vez,
Amor me contou de sua vida
e a verdadeira estória de sua família.

Quase se desesperou,
quando contei a versão de Loucura.
Nunca ninguém a abandonou.
A mãe deles é uma pobre velhinha,
doente e sozinha,
chamada Tristeza.

Um dia Amor precisou leva-la ao hospital
e a menina dormia.
Acharam melhor não acorda-la,
para não preocupa-la,
e a deixaram sozinha.
Quando voltaram do médico
a menina sumira.
Desde então vinha a procurando,
em todo canto e em cada esquina...

Mas o que ele nunca me contou,
é como ele e a menina,
haviam esbarrado em minha vida.
Mas agora já não queria outra vida.


III.
Depois daquela noite de luar bonito,
e a aurora durando até meio-dia,
nunca mais tocamos no assunto
da “mentira” da menina
ou, pelo menos,
da completa divergência
de suas lembranças de família.
Tanto eu quanto ele, todavia,
conversamos, discutimos,
dialogamos, ouvimos,
e até brigamos,
mas novamente tentamos
e, por fim, convencemos
Loucura: já estava na hora
de ela reencontrar sua mãe
e de eu conhecer minha sogra.

No domingo seguinte acordei sozinha
e após um instante aflita
sai do quarto e me deparei
com mãe e filha
chorando entrelaçadas...
visivelmente amadas
entre si,
nada mais importava...
Procurei o olhar de Amor,
mas o irmão e filho
se perdia fixo,
contemplando paralisado
aquela felicidade.
Estava sentado inerte,
quieto e triste, na surdina,
como um sacrifício
que fora, na esquina,
oferecido e esquecido
até a próxima chuva fina...

Ao lado da mãe, Loucura parecia
mais nova do que nunca.
Rejuvenescida pela alegria
de se aninhar no colo da velha coruja.
Por minha vez, nunca pude fazer ideia
da faixa etária de D. Tristeza,
mas, ao contrario da de sua filha,
e um pouco, também, de seu filho,
que variavam de acordo com o humor
sua velhice me parecia inalcançável
e inimaginável, já no primeiro momento.
Deus que me perdoe,
mas realmente nunca havia visto
e até hoje estou por ver
alguém com a aparência tão idosa.

Ela, todavia, ainda parecia ter
uma alma forte e bondosa.
Ao me encarar pude perceber,
num leve brilho cor de rosa
em seus olhos já quase cegos para ler,
os últimos vestígios da jovem formosa
que deveria ser
antes da atitude corajosa
de dar vida a outro ser.
Em cada ruga de sua face oleosa
e de seu sorriso puro e clichê
via-se as cicatrizes da tarefa penosa
de doar a vida para outro ser.
No seu caso dois outros seres,
Amor e Loucura,
suas únicas razões de continuar a viver.
Ser mãe era sua cura,
era o que a impedia de morrer.

E com o passar da semana e dos meses,
pude até vê-la rejuvenescer
por segundos, algumas vezes,
ao ver a filha crescer
ou ao lembrar que um dia teve
um amor, como eu e seu filho fazíamos nascer...
ou, ainda, assistindo as novelas da tevê
que lhe faziam lembrar e rever
pesadas lagrimas e sorrisos leves
que há muitos anos teve que verter.

Dona tristeza, que pedia para ser chamada
apenas de Mãe Triste,
me adotou como uma nora amada,
apressada por fazer-se a mãe que nunca tive.
E assim vivemos nessa morada,
durante um ano que parecera vinte
como uma família feliz, unida,
amada e forte.
Até aquela estranha madrugada.

Me lembro como se fosse ontem,
acordei e vi o relógio, do criado mudo:
meia-noite e um.
O motivo de ter acordado
foi o vazio de meu corpo nu,
de repente, sozinho no leito
após sentir o movimento
de Amor se levantando num segundo
ligeiro e atento.

Perguntei-lhe onde ia
e recebi em resposta o silencio,
imaginei que ele já estaria
vagando meio sonambulo
no banheiro ou pela cozinha,
mas não achei nada dele no apartamento,
nem ele, ao me levantar,
já cansada de na cama esperar.
Tentei não me desesperar
para as outras não acordar,
mas algum barulho ou movimento
acabou por me denunciar.
A porta do outro quarto
se abriu para minha sogra despertar.

Mãe Triste se levantou
e se pôs a chorar,
mas logo se acalmou
e pode me contar
que o Seu grande amor,
pai de Amor e Loucura,
havia repentinamente sumido
numa madrugada de muitos anos atrás
escorregando da cama para um abismo
de onde nunca mais pode retornar.
Despejou todo o peso daquele segredo
durante anos reprimido e já quase esquecido
sobre mim, para depois tentar me consolar...
dizendo que o filho
nunca seria igual ao pai,
pois havia visto
a Mãe viver sofrendo
e nascera para me amar.
Abriu a porta e saiu, quase correndo
com seu passo duro de idosa,
de repente, prometendo voltar,
com o filho e um anel de noivado
antes mesmo da menina acordar.

Contudo Loucura, como sempre,
acordou ao amanhecer
e, mais uma vez, só a gente
se encontrava aqui, a sofrer.
Me agarrei a seu corpinho frágil e quente,
apertando totalmente seu modo de ver
contra meu corpo, abraçando-me profundamente
ao seu otimismo contente
e a sua certeza de que eles iriam aparecer
antes mesmo de que o dia esquente.
Mas ele esquentou e esfriou,
e mais uma noite chegou
e nem sinal de meu Amor
ou da Mãe Triste...
apenas Loucura ficou,
para tentar me consolar
e fingindo ser adulta
tentar não se desesperar.

Na manhã seguinte, contudo,
foi sua vez de me abandonar
dizendo que iria revirar tudo
até nossa família encontrar.
Procuraria nos escombros
de seu antigo lar
e em cada canto vazio e sujo
dessa cidade, até encontrar
mãe e irmão sumidos
e talvez perdidos
sem conseguir voltar.


Quis ir com ela,
mas me mandou ficar,
com uma lucidez madura e sincera
que brilhou inédita
em seu olhar.
Alguém precisa ficar e esperar,
pois eles podem finalmente
conseguir voltar
mas se na casa não tiver gente,
como poderão entrar?

Junto com ela
todavia
foi-se embora, pela porta,
minhas esperanças de um dia
abri-la, novamente, para a alegria.

Já me desejava morta,
já me sentia uma morta-viva,
ao encarar no espelho minha boca torta
e minha alma vazia...
Quando completou uma semana exata
de que o Amor sumira,
naquela madrugada maldita,
descobri não estar completamente sozinha.
Não haviam partido sem me deixar nada,
ao menos, algo de estranho restara
dentro dessa casa abandonada.
Daquela família alucinada,
que transformara meu lar em hospedaria
e sumira sem a conta pagar,
algo de vivo sobrara
dentro de minha vida arruinada.

E quem diria?
Que me deixariam uma rara
e linda felicidade. Este pequeno vestígio de nostalgia,
um ultimo presente que me consolara,
um ultimo motivo de alegria,
que no útero eu carregava...
Sim, era você mesmo minha filha,
o ultimo resquício daquela família,
a nova vida que me restava
e que, não teria outra opção,
não poderia achar outro nome para batiza-la
se não o seu, minha Solidão,
minha filha única e amada.
Por tua causa, nada foi em vão
por você ainda estou nesta casa
e tudo pode ser mais que um delírio
triste e apaixonante da estrada.




Fevereiro e Setembro de 2015
Morro do Estado, Niterói (RJ)

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