domingo, 27 de outubro de 2013

Sorriso de Fogueira

A noite estava fria,
mas minha mente fervia
e a única esperança
para meu resquício de sanidade
era, talvez,
um banho de
mar.

No momento em que
meu primeiro pé
afundou na areia
senti meu rosto ser beijado
com força e ternura
pela carinhosa fúria de Iansã.
Me despi e corri,
com os braços abertos,
para os abraços salgados de Iemanjá.

Após longos minutos
de prazer e aventura
nas bênçãos e sermões
das ondas de Janaina
me decidi, já cansado,
por voltar a terra firme,
para dedicar
estes versos
às santas negras
de escravos
e sambistas.

Contudo,
tomei um susto,
com o que vi,
quando virei para a praia:
Por um segundo,
vi Xangô Minino
pulando uma fogueira de São João,
no meio da areia!

Quando cheguei mais perto,
saindo do reino de Princesa Ina
e afundando
novamente
os pés na areia,
vi que, na realidade,
a fogueira
era o lixo da cidade
queimando
para esquentar
uma família de mendigos...
E o meu Xangô Minino
era, na realidade,
o filho caçula
desta.

Fiquei parado,
um tempo,
olhando
aquele menininho esfomeado
correr e pular envolta da fogueira
de lixo
como eu fazia a anos atrás nas fogueiras
da noite de S. João...

Quis escrever para ele...
Escrever versos que
eu sabia
ele jamais leria...
Escrever para conta-lo que
Xangô, o Orixá da Vida,
possivelmente
havia esquecido
daquelas existências.
Escrever para dizer
aquele pobre menino negro
que seus Deuses,
assim como todos os outros,
não existiam.

Mas não lhe disse nada.

Quem,
na realidade,
disse algo
foi seu sorriso,
que brilhava dentro da escuridão,
refletindo as luzes
da espada de Ogum
e da fogueira de Xangô,
ainda que de lixo.

Aquele sorrisinho brilhante
daquele menininho
pretinho
magrinho
e fofinho...
O sorriso de Xangô Minino
me explicou
que quem havia esquecido
àquela família
-que só sobrevivia,
graças a vida
que emanava daquele
sorriso-
não foram os Deuses,
mas sim os homens.

Naquelas gargalhadas
de infância e calor
ouvi o canto em Iorubá
e os gritos
de seus antepassados
no tronco
ou no Quilombo.

Me despedi daquele sorriso
e de seus Orixás
e desejei
silenciosamente
ao pequeno Xangô que,
assim como para seus antepassados,
seu verdadeiro Deus fosse a Liberdade
e suas santas a Luta e o Amor.



Jacarepaguá, 26 de Outubro de 2013

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