segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Uma História de Simones e seus maridos.




Meu nome é
Simone da Conceição.
Simone,
por causa de minha avó:
Maria Simone,
ou Dona Simone...
e da Conceição,
pois nasci dia dois de fevereiro,
dia de Yemanjá.

Não sou negra,
nem branca.
Tenho cor de brasileira,
tenho cor de samba,
cor de mulata.
Sou mulata.

E, apesar dos anos
e dos dois filhos,
JB e Jorginho,
há quem diria
e diz
ainda
que uma Senhora Mulata,
modéstia a parte.

Cresci ouvindo estórias,
de mamãe e vovó,
sobre meu avô.
Que morreu
alguns anos
antes de Deus
me enviar pra cá...

Zé Navalha.
Aquilo sim era um verdadeiro
negro.
A pele cor de jambo,
mais de dois metros de altura,
aquele nariz colossal e lindo,
aquele olhar grave
ou doce,
e sabe-se lá o resto...

Quando mamãe dizia isso,
“sabe-se lá o resto”
por algum motivo que
nunca consegui entender ao certo qual,
vovó ficava com a pele
completamente
vermelha,
cor de sangue,
realçando seus olhos
verdes,
um sorriso
jovem
brotava em seu rosto
–sorriso que só conheci nos momentos em que falava de vovô-
E brigava, sempre, com mamãe,
e logo mudavam de assunto.

Zé Navalha.
Meu avô.
Aquilo sim era um verdadeiro
malandro.
Um dos melhores capoeiristas
daqui do Morro do Encontro,
onde nasci, cresci, vivi
e ei de morrer...
isso, na época em que
malandro
não tinha facção
e só tinha dois inimigos:
um temporário,
aquele que batalhava
com ele
nas rodas de ginga e facas,
e o outro,
eterno inimigo,
a policia e suas fardas.

Zé Navalha.
Vovô.
Além de tudo, era um verdadeiro
Homem.
Forte,
de caráter e braço,
carinhoso e corajoso.

Isso nunca me foi contado
por palavras faladas,
mas sim,
muitas vezes,
por palavras sorridas
e\ou brilhos perdidos
no olhar
de Dona Simone.

Dona Simone, que,
por sinal,
essa sim,
era uma verdadeira
Mulher.

Nunca foi de ficar na
sombra
de marido...

Mostrou-se,
aos 16 anos, a
mulher
corajosa e independente
que sempre foi,
e ensinou
e obrigou
as filhas
e a neta
a ser.

Largou a casa de Pai Doutô,
lá no asfalto,
pra subir o morro
e vir mora com o
malandro
que encontrara com seu coração
numa mesa de sinuca
e conversa
ao pé do Morro do Encontro
que frequentava
desde que virara moça.

O malandro
virou sapateiro
e a moça,
a partir de agora,
Dona Simone.
Inaugurou a
sina
de todas as
mulheres
que nasceriam,
sempre
mulheres,
na nova família
de mulheres
que se formava:
Os ‘docinhos de Simone Navalha’,
E por herança
ou maldição
de suas quatro filhas
e, depois, também
de sua neta,
Simone da Conceição.

Sucesso entre todas as madames
do Méier à Vila Isabel.
- hoje apenas vovós
de criancinhas fofas
da classe média
mas ainda boas freguesas,
junto com as duas
sucessoras gerações
de madames-

Mas Zé Navalha,
vez por outra,
arrumava
uns trocados extras
com um ou dois sambas
de cachaça e sinuca.
E, segundo Dona Simone,
que controlava todas as finanças
da Sapataria,
dos docinhos
e até do botequim depois da janta,
por serem dinheiro da boemia,
deviam ser gastos com boemia.

E eram.

Dai aquelas fotos antigas,
dos grandes sambas
que aconteciam
na Lage de Dona Simone,
que duravam dias seguidos,
regados a feijoada, cerveja e docinhos
até acabar o dinheiro...
em comemoração ao
novo samba
de Navalha.


Também aos dezesseis anos,
conheci eu,
Simone da Conceição,
meu amor,
meu negão,
meu xodó...
Jardel.

Jardel.
Também cor de jambo,
também dois metros de altura,
também sapateiro
e sambista nas horas vagas,
também boêmio,
porém boêmio do século XXI,
boêmio alcoólatra...

Mas com 16 anos,
Jardel me encontrou
numa noite estrelada,
e veio dançando um break...
de uma forma sexy e complicada,
como eu só tinha visto na fita cassete
que havia ganhado de aniversário
de uma cliente antiga de vovó...
e assistia o dia inteiro
na humilde tv
da cozinha de vovó...
a única, na época, da família,
de mulheres
doceiras....
e ficava sonhando
com aqueles crioulo-gringos
e seus cabelos escovinha bem cuidados...
que só existiam na TV,
pensava eu.

Jardel não era gringo.
Mas era crioulo.
E dançava break.
E tinha o cabelo escovinha
quase
bem cuidado...
E era lindo...

Pra mim Jardel era
a versão anos 80
do Exu pilintra,
amigo de vovô,
que invadia meus sonhos
todas as noites,
coberto de romance
e luxúria.

Mas Jardel não era um Navalha.

De meu marido,
ao contrário do de minha avó,
não posso dizer que
aquilo sim era um verdadeiro
Homem.

Homem não bate em mulher.
Homem de verdade
cuida
de sua mulata
como a seu melhor amigo,
pois sabe, que ela
na realidade
o é.
Sabe que ela,
na realidade,
não é verdadeiramente sua
em porra nenhuma...
ela é livre,
é uma Mulher
que está ao seu lado,
e não em sua
sombra,
simplesmente porque
quer
e enquanto
quer.

Pelo menos
era assim que
vovó Simone
dizia que devia
ser.
Mas não era.
Não foi.
Não é...
nem mesmo agora.
Nunca foi.

Sempre ouvia as palavras de minha
avó,
mesmo muito depois de ela partir,
em minha
cabeça
todas as noites
quando Jardel chegava
bêbado
e me batia
me batia
me batia
e me xingava
e me batia
e dizia que a culpa
dele não conseguir morar numa cobertura,
dele não ser um grande sambista,
dele ser um sapateiro fudido
de merda
que não consegue sair
dessa merda de Morro
do Encontro
de merda
era minha.
E tudo que eu
ouvia
era a voz
de minha
avó.

Mas talvez realmente fosse
minha
a culpa.
Pois apesar do
silencio
que fazia quando Jardel,
sóbrio,
me contava seus planos e sonhos,
nunca quis saí do Morro do Encontro.

Pra que?
Pra morar em uma cobertura
com vista
para um morro igual ao meu,
na mira
de balas perdidas
dos traficantes iguais aos do meu morro,
só que
de outro morro
parecido
com o meu
mas que não é o meu?
Pra ter medo de passar
com as crianças
na frente desse morro
e pensar que
a pele
dos moleques que saem de

é mais preta
que a pele
dos meus neguinhos?

Não Jardel!

Foi isso que eu disse pra ele.
Foi isso que eu disse pra ele, vovó.
Foi isso que eu disse
quando ele
veio me xingando,
hoje mais cedo,
e tirando o cinto
pra me açoitar
mais uma vez.

Eu disse:
Não Jardel!
Hoje não!


Mandei as crianças irem pra casa da avó delas,
no alto do morro,
e peguei a navalha
de barbear
que já tinha posto
ao lado do fogão
mais cedo
quando a dor
e a angustia
me dilaceravam
e me aporrinhavam as ideias.

Com a navalha na mão,
olhei para seu rosto assustado
e paralisado
e repeti:

Não Jardel!
Não! Hoje Não!

Sou Simone da Conceição.

Simone,
por causa de minha avó,
Maria Simone,
Dona Simone,
uma mulher de verdade,
que você conheceu,
mas, infelizmente,
meu Pai já levou pra junto Dele,
e pra junto de seu marido,
Zé Navalha.

O maior malandro que esse morro já viu.
Pena que você não conheceu...
nem eu...
Mas Dona Simone,
nunca foi mulher de malandro,
nunca admitiu que homem nenhum
batesse
nela,
nem em suas filhas
nem em sua neta...
mesmo sendo esposa
do maior malandro
desse morro
de merda
que deu a luz a mim
e a você...

Zé Navalha
que, infelizmente,
você não pode conhecer
para ver,
quem sabe,
se aprendia a ser...

E da Conceição,
pois nasci dia dois de fevereiro,
dia de Yemanjá.

Sou Simone da Conceição.
Filha de Yemanjá com Ogum.
Filha da Rainha dos Mares
com o Santo Guerreiro.

E hoje recebi uma visita de meu Pai,
e ele me jurou que
a partir de hoje
nenhum homem mais
tocará em mim
sem que seja
para me dar
prazer.

Prazer, Jardel.
Tesão. Amor. Lembra?
Não isso!


E enfiei-lhe a navalha na barriga.

Lá ela está até
agora,
junto com ele,
em sua barriga
na cozinha.

Com seu sangue,
com o sangue de meu
amor,
mesmo que um amor burro,
um amor idiota,
um amor errado...
o sangue
de meu amor...

com teu
sangue
escrevi estes versos
pelas paredes da casa
para que leiam,
nossos pequenos
filhos...
meus únicos amores
verdadeiros
e certos
nesta vida...
Os primeiros
Homens
da família de Dona Simone
e Zé Navalha.
Filhos do Morro do Encontro
e dos Orixás...
Filhos de um amor
manchado
de sangue,
mas ancestral
de um
outro amor
puro
e doce
como o gosto de cerveja
e tristeza
de um bom samba.

João Batista,
por favor
leia tudo em voz alta
para seu irmãozinho
Jorge
que ainda não sabe ler...

Mamãe ama vocês.




Setembro de 2013
Morro do Estado, Niterói (RJ)

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